quarta-feira, agosto 27, 2008

Recursos naturais

27.08.2008, Paulo Varela Gomes in Público

É Agosto, há férias aí em Portugal, volto portanto a assuntos relacionados com a questão fundacional com que se deparam os portugueses que saem fronteiras e entram "na Europa": porque é que nós não somos assim?
Sou historiador da arte e da arquitectura. Ao visitar recentemente as cidades flamengas, coloquei a mim próprio duas perguntas dedutíveis a partir da tal questão fundacional, perguntas que há anos faço a mim próprio mal chego a Salamanca ou Sevilha: porque é que só temos um mosteiro da Batalha e um mosteiro dos Jerónimos, quando na Flandres, na Espanha, na França, há dezenas?
De facto, não é possível comparar sem uma espécie de desmaio da alma o património artístico português com aquele de outras regiões da Europa de dimensão populacional semelhante: Castela, Aragão, a antiga Borgonha, a França parisiense, a Toscânia, o Véneto, a Lombardia, a Alemanha do norte (ao nível português estarão a Galiza, Nápoles, a Inglaterra, a Dinamarca, a Polónia).
Portugal foi senhor da "navegação e do comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia" (para já não falar do Brasil). Para onde foi a riqueza que teria resultado dessa "época de ouro" de expansão?
A historiografia e a ideologia anticlerical e republicana conta-nos desde o século XIX que tudo ou quase tudo se teria evaporado por culpa da nobreza e do clero, classes dominantes que teriam gasto em coisas sumptuárias os proveitos da expansão. Pois muito bem, pergunto eu que sou historiador da arte: onde está a arte, essa coisa sumptuária por excelência?
Não está. E não está porque não havia em Portugal riqueza nenhuma, poderio marítimo ou não poderio marítimo.
A riqueza, aquela que deu palácios, mosteiros, catedrais, pintura e escultura, a nobres, clérigos e príncipes, franceses e castelhanos, flamengos e toscanos, não veio da expansão marítima. Veio da terra.
No seu relatório Rumo à Vitória (1964), Álvaro Cunhal entrou numa espécie de polémica imaginária com Salazar. Este teria por hábito afirmar que Portugal é um país pobre. Não senhor, escreve Cunhal, "os recursos naturais do país são suficientes para garantir o bem-estar material a todos os portugueses".
O bem-estar, é possível. Agora grande arte e arquitectura, não. Os "recursos naturais do país", ou seja, em termos tradicionais, a agricultura, foi sempre miserável e, com ela, miseráveis os aristocratas, os conventos, os príncipes incultos, desinteressados das artes. O facto de só haver em Portugal um mosteiro dos Jerónimos diz tudo o que é preciso sobre o que foram as classes dominantes do reino, e a monarquia, na "época de ouro": pobres.
Os proventos resultantes do senhorio "da navegação e do comércio" ficavam nele, pagando a vastíssima rede de fortalezas que os portugueses deixaram pelo mundo inteiro e os homens que nessas fortalezas viveram e morreram. Serviram para proteger um império que não dava dinheiro à custa de todo o dinheiro que dava.
Pensando bem: há nisto alguma coisa de extraordinário.

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